Cara! Fantastico, adorei seu conto. Parabéns!
Um conto de emocionar até os insensíveis
- By : Alberto Valença Lima
- Category : Notícias ou dicas, Verdades vindas de outras pessoas
- Tags: Arthur Dias, conto, Síndrome de down
CONTO – MÓRBIDA NORMALIDADE
Eu tenho Down.
Mas não se preocupe, pode ler esse conto como se tivesse sido escrito por uma mulher “normal”. Se isso for muito difícil, finja que você não é uma criatura ignorante e aceite o fato de que uma pessoa com Síndrome de Down também pode ter uma vida comum, às vezes até melhor do que a sua.
Eu tinha 16 anos quando tudo aconteceu. Estava no ponto de ônibus, esse era um momento comum da minha rotina. Apesar do meu QI desfavorável, eu conseguia passar pela catraca, caso esteja se perguntando.
Ainda no ponto, sozinha, peguei um pão com mortadela que minha mãe havia preparado e passei a comê-lo. Iria almoçar assim que chegasse em casa e isso poderia estragar meu apetite, mas fazia isso todo dia e minha mãe nunca desconfiou. Após devorar o sanduíche inteiro, me levantei e atravessei a rua. Havia uma lixeira ali. Joguei fora o saco em que minha mãe embrulhara o sanduíche e os quatro guardanapos extras que ela sempre coloca e eu nunca uso.
Quando voltei para o ponto de ônibus havia um garoto lá.
– Oi, essa mochila é sua?
– É – E me sentei.
– Ah, bom. Pensei que alguém poderia ter pegado o ônibus e esquecido a mochila aqui.
– Fui só jogar um lixo fora.
– Certo.
O menino não conseguiu ficar nem um minuto com o bico calado, já emendou:
– Você tem Síndrome de Down, não tem?
Olhei para ele e fiz a cara de deboche que costumo fazer sempre que me fazem essa pergunta.
– É que eu estou estudando sobre isso… Sabe, na escola…
– Sei.
– É verdade que você não tem o M da mão? E ao invés disso apenas um risco?
Ele não ia descansar até que visse a minha mão, então resolvi lhe mostrar logo.
– Se chama “Prega Simiesca”.
Ele puxou minha mão para mais perto de seus olhos e eu quase caí em seu colo.
– Você tem os dedos curtinhos…
– Aham.
– Sempre achei melhor estudar com um modelo vivo do que com aulas teóricas.
Ele me considerava um objeto de estudo?
– Meu ônibus vem ali, se puder me dar licença…
– Eu sei que pode parecer esquisito, mas você quer ir comigo em um lugar antes de voltar para casa?
Ele me considerava normal?
– Onde? – Demonstrei um interesse excessivo, mas nunca ninguém quis passar mais do que o tempo necessário comigo.
– É um tipo de esconderijo que eu tenho. Você parece ser legal. O que acha?
– É o tipo de esconderijo que você não revela para qualquer um?
– Não. Eu levo quase todo mundo lá.
Aquilo me incomodou, ele poderia dizer que era um lugar especial ou um local que só ele conhecia, mas o que eu esperava? Ele acabou de me conhecer.
Sei que não devia, mas concordei em ir com ele. O ônibus parou no ponto, abriu as portas e eu apenas acenei para o motorista que já era meu conhecido. Então ele foi embora e não tinha mais volta, o próximo ônibus só passaria dali a duas horas e ir a pé não era uma opção.
– O ônibus que devemos pegar passa daqui uns cinco minutos.
– Ok.
Quase exatamente cinco minutos depois, o ônibus parou no ponto. Subimos e eu já percebi as diferenças. Aquele não era o meu ônibus. Não tinha o meu motorista. Não tinha as pessoas que eu costumava observar. Não tinha nem sequer o cheiro de chiclete velho que o meu ônibus tinha.
Sentamos nos assentos mais altos, aqueles que ficam sobre a roda do ônibus.
– Eu sempre me sento aqui. Todo dia. Acho que essas pessoas já até respeitam o meu lugar e não se sentam em consideração a mim.
Olhei para ele e sorri. Me dei conta da besteira que fiz. O que eu tinha na cabeça? Seguia minha rotina há três anos e nunca preocupei minha mãe, agora ela vai ligar para a escola, para a polícia, para os bombeiros…
– Você ainda não me disse seu nome.
Acordei da minha paranoia e demorei alguns segundos para assimilar a pergunta.
– Me chamo Lola.
– Muito prazer, Lola. O meu nome é Otávio.
Voltei a pensar em casa, mas o garoto não calava a boca:
– Você tem mais alguma coisa de diferente? Outra parte do corpo com nome bacana…
Ele já estava me dando nos nervos, então resolvi fazê-lo ficar quieto:
– Não, eu só sou feia, burra e defeituosa, não espere encontrar algum poder especial.
Não funcionou, mas teve um efeito interessante:
– Eu não acho você feia.
Acho que fiquei vermelha, e ele continuou a falar sem parar:
– Também não te acho burra. Você sabe o nome daquela dobra na sua mão, a prega…
– Simiesca.
– Isso! Você sabe esses nomes, e vai a uma escola comum…
Ele não reparava que poderia estar me ofendendo, mas eu relevei isso.
– Só sei esses nomes porque vivo os escutando. E na escola eu tenho o pior desempenho da turma, ainda estou no ensino fundamental e tenho 16 anos!
– E daí? Não medem sua inteligência pela rapidez com que você termina seus estudos.
– Medem sim.
– É, mas não deviam. Vamos fazer o seguinte: Você tem alguma citação favorita? A maior parte das pessoas não se lembram de muitas citações do que leem…
– Porque acha que eu me lembraria?
– Porque eu sei que você tem um poder especial. E estou apostando nesse.
Ele me surpreendeu. Muito mesmo.
– “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”, Carlos Drummond de Andrade.
– Viu! Eu sabia que você se lembraria de alguma!
– “A vida é maravilhosa se não se tem medo dela”, Charles Chaplin.
– A-ha! Quem é burra agora?
– “Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes”, William Shakespeare.
– Tá bom, não precisa me humilhar.
– Você não se lembra de nenhuma?! Como não? É tão fácil!
– Eu me lembro de uma.
– Me diz qual é.
– Não, você vai rir, ou achar estranho…
– Fala logo.
– Certo… Bem… É do Machado de Assis… E diz “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”.
Me arrepiei. De verdade, passei a mão pelo braço para ele não perceber.
– Eu não conhecia essa.
– Eu também não, até minha avó me contar. Disse que tinha bastante a ver comigo…
Sorri pra ele. E ele falou:
– É aqui, vem.
Descemos do ônibus num bairro em que eu nunca havia pisado antes. Ele me conduziu até um prédio vermelho de quatro andares, com sacadas protegidas por uma cerca de bastõezinhos de ferro escuro. Subimos um lance de escadas até o segundo andar e ele abriu a primeira porta daquele nível.
Entramos. Não havia mobília alguma ali.
– Não repara na bagunça – Brincou Otávio.
Fomos até um dos quartos do pequeno apartamento e encontramos uma bicicleta em cima de um suporte e uma TV.
– O que é isso?
– É um dínamo. Serve para gerar eletricidade… Esse apartamento era da minha avó, mas desde que ela morreu cortaram a energia.
– A mesma avó que disse que você é curioso e enxerido?
– Ela não disse isso, só relacionou a citação com a minha personalidade. Não é necessariamente verdade.
– Sinto muito.
– Tudo bem, já foi há bastante tempo.
Dei mais uma olhada naquele aparato todo e perguntei para que ele precisava de eletricidade.
– Bom, eu tenho uma caixa de sapatos aqui – Foi até atrás da TV e pegou uma caixa de tamanho médio, a abriu e exibiu os vários CDs que estavam ali dentro
– Eu tenho 67 filmes nessa caixa. Já assisti todos, então garanto que são todos excelentes.
– Quer assistir algum agora? – Eu mesma fiz a pergunta, já nem me lembrava mais de minha mãe e da preocupação que ela deveria estar sentindo.
– Claro. Você pode escolher. Mas, por favor, não escolha Matrix. Sempre que trago algum amigo meu ele escolhe esse filme.
– Tá bom. Eu já assisti Matrix mas não gostei, não entendi muito bem.
Ele fez uma cara que dizia “Não gostou de Matrix ?!”, mas em seguida pareceu se lembrar de que eu tenho uma anomalia genética e só abaixou a cabeça em direção à caixa.
Os filmes que ele tinha ali não faziam o meu estilo. Ele me recomendou alguns, como Seven, Efeito Borboleta, Donnie Darko e Alta Frequência, mas todos esses pareciam ter um enredo complexo. Acabei escolhendo O Curioso Caso de Benjamin Button, uma história sobre um rapaz que nasceu velho e foi ficando mais jovem com o passar dos anos.
Ele pedalou na bicicleta por alguns minutos e disse que a bateria já armazenara energia suficiente para assistirmos o filme todo.
Nos sentamos no chão. Durante o filme, que acabou sendo ainda melhor do que eu esperava, Otávio reparou que meus olhos têm uns pontos brancos na íris. Eu falei que era mais uma coisa com nome difícil, daí ele pediu para que eu falasse o nome e então eu disse: “Manchas de Brushfield”. Ele falou que era muito legal ter uma amiga com partes do corpo com nomes de outras pessoas. Nunca havia pensado nisso dessa forma.
– Quem você acha que foi Brushfield? – Ele me perguntou.
– Não faço a mínima ideia. Provavelmente a primeira pessoa a ter essas manchas.
– Ou o médico que as descobriu.
O filme terminou e eu já estava morrendo de sono.
– Acho melhor você ir para casa. Sua mãe deve estar preocupada.
Eu sabia daquilo, mas não fazia mais diferença pra mim.
– Posso ficar aqui um pouco mais?
– Claro.
Um silêncio constrangedor dominou o cômodo, e como fui eu quem quis ficar, pensei que seria eu que deveria quebrá-lo.
– Eu nunca fiz isso antes.
– Fez o que?
– Perdi o ônibus.
– Sério? Acontece sempre comigo!
– Não, mas não só perder o ônibus. Tudo isso. Eu nunca fui com alguém para um lugar que eu não conhecia, nunca deixei de seguir as orientações dos meus pais à risca…
– Então porque veio comigo?
Pensei um pouco e achei uma resposta satisfatória:
– Porque eu sempre vi o meu distúrbio como um fardo, algo que me afastava das pessoas; porque eu nunca encontrei alguém que me olhasse exatamente como olha para qualquer outro indivíduo… Eu nunca perdi o ônibus porque nunca ninguém me convidou a perdê-lo.
Enfim, consegui fazê-lo ficar calado, mas agora queria ouvir sua voz.
– Imagino que tenha sido difícil pra você conviver com outras pessoas e ser discriminada por elas.
– “Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente”.
Ele ficou olhando pra mim, ponderando as palavras.
– William Shakespeare – Completei e sorri, ele sorriu também.
Então fomos embora. Ele foi comigo até o terminal rodoviário, dali eu conseguia pegar o ônibus para casa sozinha, e ele pegou outro ônibus, para a casa dele.
Depois daquele dia passamos a nos encontrar sempre no “Esconderijo”, levamos almofadas para lá, assistimos aos outros filmes da caixa de sapatos e, quando cansamos desses, compramos outros e aumentamos a coleção. Com o tempo aquele esconderijo passou a ser mais nosso do que dele. Ele me contou a história de que a avó deixara o apartamento somente para ele, o único neto, e de que ele nunca pensou em alugá-lo. Passamos alguns apuros, como no dia em que inventamos de adaptar um fogão para o apartamento e uma panela de pressão explodiu. Desde então voltamos a pedir pizza por telefone. Mas o mais importante é que ali, naquele pequeno aposento, nunca existiu preconceito e nunca existiu maldade. Nos isolamos do mundo e criamos o nosso universo. Escondidos, para vivermos livres. Presos, para vivermos soltos.
Autoria: Arthur Dias