Boa noite, acabei de ler seu texto sobre o filme “Quarto de Jack” e queria primeiro parabenizá-lo pelas colocações mais do que pertinentes, e também por me identificar muito com seu ponto de vista sobre o filme, pois foi exatamente como me senti após assistir. Li o livro e fico surpreso dele, tão reconhecido mundo afora, ser tão pouco conhecido no Brasil. Sou tradutor e revisor de livros e por conta da minha profissão digamos que já folheei muitas páginas ao longo da minha vida, mas confesso que nenhum livro tocou a minha alma onde o Jack conseguiu chegar. Quanto ao filme, apesar de não conter tudo o que há no livro, ainda assim emociona e nos faz pensar. O que eu posso dizer é que não consegui dormir aquela noite, ainda revendo tudo mais detidamente. Não sei por que, mas depois do filme, igualzinho a você, senti uma vontade – não, uma necessidade, de pôr no papel o que tinha visto e descrever o que tinha sentido, o mesmo de quando li o livro (mas que até então tinha ficado apenas guardado). Depois de algumas linhas, me senti compelido a escrever pra minha mãe (É, uma carta mesmo, papel, caneta, selo, essas coisas! É que ela não se dá muito com e-mails e mora em outra cidade). É bem peculiar o que um filme desses provoca nas pessoas – acho que em mim foi uma vívida sensação de familiaridade com as palavras do Jack.
Aqui está um trecho:
“Não consegui dormir essa noite, ainda pensando no filme. Na verdade, quando eu li o livro já tinha ficado do mesmo jeito, meio sem saber o que dizer. Mas acho que as imagens do filme são mais fortes do que as palavras do livro, e mais do que pensar, te fazem reviver. Acho que me vi de novo com 5 anos, mesmo que as lembranças sejam igual um filme muito antigo que a gente não sabe direito de quando foi. Queria me lembrar mais, queria ver aquele garoto, mais nitidamente do que as lembranças meio apagadas que eu tenho. Nenhum garoto de 5 anos tem idéia do que as mães passam pra criá-los. E acho que mesmo depois, quando a gente cresce, parece não se dar conta – ou importância. Talvez eu tenha feito pouco, talvez pudesse ter feito mais. Na cabeça de uma criança, ser um bom filho parece menos que obrigação e mais um tipo de barganha, quando você quer alguma coisa em troca. Não é por maldade, talvez apenas a simplicidade ingênua que a gente tem quando é pequeno e que se perde com o tempo.
As lembranças que eu tenho às vezes parecem meio embaralhadas, meio esfumaçadas pelo tempo… Lembro de uma escola enorme, e tão longe que pra chegar parecia uma aventura, até mesmo passar na porta de um cemitério era preciso. E nem imaginava que aquilo tudo custava dinheiro, e o quanto custava. Fico imaginando quantas roupas lavadas deve ter custado. Deve ser por isso que me lembro tanto de roupas no varal, de me esconder no meio delas pra brincar. Lembro de uma noite de febre muito forte, de uma mãe com um filho… um carro, um hospital. Lembro de uma mãe carregando um menino como pé enfaixado, descendo um morro esburacado, acho que era uma kombi de escola que esperava lá embaixo. Lembro de uma mãe com um filho e umas bolsas, subindo outro morro, esse de tão alto parecia uma montanha, e que pra se chegar lá tinha que atravessar uma passarela escura, que no fim dava voltas e mais voltas… Lembro de uns pés de mato que a mãe mandava o menino apanhar no quintal, e que era para pôr na comida, e dava um gosto bom.
Não me lembro de muitos natais. Nem de presentes de natal embaixo de árvore de natal. Não que não tivesse presentes, mas aquilo que se via na tv, que as pessoas faziam no natal, parecia de algum filme, ou só da tv. Talvez porque comida fosse mais importante que árvore de natal, ou porque o papai noel devia ser gordo demais pra subir o tal morro esburacado. De qualquer forma, isso não mudava a sensação de que era uma época especial, de que alguma coisa acontecia, pelo menos nas casas das pessoas, que pareciam sempre tão cheias de gente, de barulho e de cheiros. Mas se isso tornou mais difícil acreditar num velho gordo de barba branca e roupa vermelha, ao menos me ensinou o quão fúteis podem ser os motivos que levam as pessoas a se empanturrarem numa noite de dezembro, e que o sentido do natal é qualquer coisa menos comida.
Depois que se cresce, quando a gente não precisa mais ir à escola, e acha que já aprendeu tudo, que finalmente virou gente grande, o que resta são as lembranças. E acho que esse é o nosso maior engano – achar que já aprendeu tudo. Acho que aqueles que fixam os olhos só pra frente mais cedo ou mais tarde acabam se perdendo no caminho, por isso não esqueço do menino da história, que deixava pedaços de pão no meio do mato pra lembrar do caminho de volta – João e Maria, acho. Quando olho pra trás, e acabo descobrindo as migalhas que ficaram no caminho, eu sei que posso voltar. Ainda reconheço as feições daquele menino, posso ouvir os sons da noite que o faziam dormir todo encolhido debaixo do cobertor, posso sentir o cheiro que inundava aquela casa velha, com aromas de arroz, feijão apitando na panela de pressão, e alguma outra coisa gostosa e indistinta no prato, que tinha de me apressar a comer pra não perder a hora da escola. Lembrar de tudo isso, de todas essas migalhas de pão, me ensinam que eu não aprendi tudo que tinha pra aprender, que a última lição é não esquecer. Não esquecer os conselhos, a mudez, o sorriso, a zanga, as dores. Acho que é disso que somos feitos, de um punhado de migalhas de pão guardadas, pra nos lembrar do caminho de casa.”
Como você disse que ainda não decorou muito o filme, disponibilizei no meu canal no youtube uns trechos, apenas alguns do livro que mais me tocaram.
https://www.youtube.com/results?search_query=kleber+cruz+quarto+de+jack
A propósto, gostei muito de todas as suas dicas de filmes.
Um abraço, Kleber Cruz